UM OLHAR RELIGIOSO SOBRE A PIEDOSA TRADIÇÃO DA FOGUEIRA DE SÃO JOÃO: ORIGEM BÍBLICA OU NÃO?


 
Por Rafael Medeiros
 
Na região do Nordeste brasileiro, quando chega o mês de junho, as casas, as lojas, as escolas, as ruas, as praças e outros espaços públicos e privados ganham uma decoração bem alegre, festiva e colorida. A atmosfera que paira sobre as cidades nordestinas envolve uma mistura de cheiros de comidas típicas da região, perfumes e fogos de artifícios. Nas calçadas das lojas os trios musicais começam tocar o forró pé de serra1, convidando os clientes a entrarem para fazerem compras e anunciando que se aproxima a festa do São João. Essa festa tão famosa e singular cara para os nordestinos, e que cada vez mais tem tomado um caráter de festa secular, na verdade tem uma origem religiosa que está ligada à pessoa de Jesus Cristo e ao seu nascimento. Trata-se do nascimento de São João Batista que, segundo a tradição bíblica, foi o último dos profetas, precursor, primo e amigo de Jesus. 

Ao discorrer sobre a origem das festas juninas, Castro (2008, p. 2) identifica que:

Consta na bíblia que Isabel, a mãe de João Batista, era estéril e estava em uma idade avançada e por isso não podia ter filhos. Mesmo em meio a essas adversidades Isabel engravidou e disse à sua prima Maria, futura mãe de Jesus Cristo, que comunicaria o nascimento do seu filho com seu esposo Zacarias acendendo uma grande fogueira. O filho de Isabel foi o profeta João Batista, que posteriormente batizaria Jesus Cristo nas águas do rio Jordão. João Batista seria o anunciador da vinda do Messias. Esta versão ligada à sacralidade explicaria a prática de se acender fogueira no dia 23 de junho.



O autor relaciona a tradição cultural da fogueira de São João à tradição bíblico-religiosa das Escrituras, que narra os episódios do nascimento da infância de João Batista: o anúncio a Zacarias, seu pai, a sua concepção originária de dois idosos estéreis, a visita de Maria, a mãe de Jesus a Isabel, mãe de João Batista, o nascimento do menino João, a sua circuncisão e imposição do nome “João”. Nesse caso a tradição da fogueira aparece relacionada de forma restrita somente ao fato do nascimento do mesmo. Isso pode ressoar com mais sentido aos nossos ouvidos quando lembramos que, embora tenha sido um Santo Mártir, a festa do dia 24 de junho faz memória ao nascimento do Precursor2, ficando a memória de seu martírio para o dia 29 de agosto. A Igreja Católica, compreendendo que o nascimento de João Batista (aquele que vibrou de alegria no ventre de sua mãe no sexto mês de gestação ao sentir a presença do Filho de Deus no ventre de Maria, no primeiro mês de gestação) provavelmente se dera seis meses antes do nascimento de Jesus, reservou a data de 24 de junho no calendário litúrgico para festejar o nascimento de João Batista, exatamente seis meses antes do Natal, a solenidade do nascimento de Jesus. Sobre esse aspecto, Gastal (2013, p. 187) identifica a dedicação da festa do dia 24 de junho a São João Batista como uma tradição contida no calendário cristão já no século VI.
A narrativa lendária que serve de fundamento para a tradição oral das fogueiras juninas (que Castro, 2008 menciona na primeira citação acima) preserva essencialmente a mensagem de anúncio do nascimento da criança: a fogueira teria sido o sinal utilizado para espalhar tal notícia. Por outro lado, existem divergências nos detalhes da narração, uma vez que em algumas narrativas desta tradição o personagem que acende a fogueira é a própria mãe do menino, enquanto que em outras é o seu pai e, ainda, em outras não se nomeia a pessoa que realizara tal ato. Seguindo uma interpretação sensata, é possível deduzirmos que não fora Isabel a personagem a acender a fogueira que serviu de sinal, uma vez que a mesma deveria estar acamada e sem poder fazer esforço algum, tendo aos braços o seu filho recém-nascido. Portanto, levando em consideração esta evidência, é mais sensato crermos que o próprio Zacarias ou uma outra pessoa o tenha feito. 


Após essas considerações acerca daquilo que a cultura popular diz a respeito do nascimento de São João Batista, atentemos agora para a narração bíblica de tal fato histórico. Conforme Lucas (Lc 1, 57-58), “Quanto a Isabel, completou-se o tempo para o parto, e ela deu à luz um filho. Os vizinhos e os parentes ouviram dizer que Deus a cumulara com a sua misericórdia e com ela se alegraram.”


Como podemos constatar, a única informação que o evangelista nos dá acerca do nascimento do menino fala apenas da completude do tempo da gravidez de Isabel e nos diz que ela deu à luz um filho, e que os seus vizinhos e parentes se alegraram com ela. Assim, não há na narrativa evangélica nenhuma menção a uma fogueira acesa por quem quer que seja. É importante notarmos que a forma como o autor sagrado escreve parece transmitir a impressão de que os vizinhos e parentes de Isabel foram informados do nascimento do menino sem um grande intervalo de tempo, como se tivessem recebido a notícia por meio de um sinal que os tenha avisado a todos de uma só vez.


Não é legítimo afirmarmos que a família de João Batista não tenha acendido uma fogueira para comunicar aos parentes e vizinhos o seu nascimento pelo simples fato de não haver registros a isso relacionados nos textos bíblicos, ainda mais levando em consideração os aspectos geográficos do local do nascimento do mesmo ˗ como veremos a seguir ˗, uma vez que, conforme o próprio evangelista Lucas situa a entrada de Maria na casa de Zacarias como esta estando localizada na região montanhosa da Judeia. A tradição popular preservou a memória do local da casa de Zacarias e Isabel, juntamente com o local onde João Batista possivelmente teria nascido, como também a rocha na qual Isabel escondera o menino da perseguição aos inocentes, desencadeada por Herodes (Mt 2, 16-18)3. A mesma casa está localizada na cidade de Ain Karim, uma aldeia situada a cerca de 6 quilômetros a oeste de Jerusalém (e a mais de 100 quilômetros de Nazaré, onde Maria morava, conforme Lucas 1, 26-27), mais especificamente na região montanhosa da Judeia. 


Tendo em vista os aspectos geográficos do local do nascimento de João Batista, não é ilegítimo imaginarmos que, se uma grande fogueira fosse acesa ali, no alto das montanhas, sem dúvida as chamas e a fumaça poderiam ser vistas a longa distância pelos habitantes das regiões mais baixas, e a luz de tais chamas e tal fumaça chamariam ainda mais a atenção dos mesmos caso alguém tivesse definido que este seria o sinal com o qual se anunciaria o nascimento do filho de uma idosa estéril, com a qual seus parentes e amigos deveriam estar preocupados, já que se tratava de uma gravidez de risco. 


Uma última pergunta nos cabe fazer, tendo em vista que a pessoa de Maria, a Mãe de Jesus entra na lendária narrativa da origem da tradição junina da fogueira: seria possível à Mãe do Messias perceber o sinal de uma fogueira acesa, que fora combinado com os pais de João, conforme Castro (2008) escreve na citação do início deste texto? A resposta, obviamente seria que não, uma vez que a distância entre Nazaré e Ain Karin é de mais de 100 quilômetros, o que impossibilitaria a percepção de um sinal desta natureza.


Observando bem a narrativa da Anunciação do Anjo Gabriel à Virgem Maria, percebemos que no versículo 26 Lucas escreve “No sexto mês o anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galileia, chamada Nazaré, a uma virgem desposada com uma varão chamado José da casa de Davi; e o nome da Virgem era Maria.” O autor situa o acontecimento da Anunciação no tempo, especificando que este acontecera “no sexto mês”, isto é, no sexto mês da gravidez de Isabel, uma vez que tal narrativa tem início logo após o relato da Anunciação do anjo a Zacarias, seguida da gravidez de Isabel, e que quando da Anunciação a Maria, o mesmo dissera “Também Isabel, tua parenta, concebeu um filho na velhice, e este é o sexto mês para aquela que chamavam de estéril” (Lc 1, 37, Grifo nosso). Ao final do diálogo entre Maria e Isabel na ocasião de sua visitação, é-nos informado pelo evangelista que:“Maria permaneceu com ela mais ou menos três meses e voltou para casa.” (Lc 1, 56). Ao fazermos a soma dos seis meses da gravidez de Isabel com mais os cerca de três meses da presença de Maria em sua casa, obtemos um total de cerca de nove meses; portanto, o tempo de uma gravidez completa.


Em sua obra, na qual reúne dados dos evangelhos canônicos e apócrifos relativos à vida de Maria, Arruda (2017, p. 43)4 escreve: “Enquanto esteve em Ain Karin, Maria serviu Isabel com amor e dedicação. Passados três meses, o menino nasceu e, ao ser circuncidado, recebeu o nome de João. Algum tempo depois, Maria voltou para Nazaré.” Com esta afirmação de Arruda (2017) e baseados nos dados apresentados por Lucas sobre o tempo da Anunciação e da volta de Maria à Nazaré é possível deduzirmos que não haveria necessidade de anunciar o nascimento de João por meio de uma fogueira a Maria, mas somente aos demais parentes e amigos de Isabel e Zacarias. Possivelmente, Aquela que partiu apressadamente para a região montanhosa da Judeia (Lc 1, 39), após ser informada da gravidez de Isabel, fora impulsionada tanto pelo desejo de compartilhar a alegria de ter sido a eleita para ser a Mãe do Messias (Jesus) com aquela que também concebera milagrosamente, quanto pelo desejo de auxiliar sua prima idosa nos últimos meses de sua gravidez e no seu parto. Assim, em conformidade com a afirmação de Arruda (2017) acima citada, há a possibilidade de Maria ter estado presente no momento do nascimento do menino João, ficando o sinal da fogueira direcionado não para Ela, mas para os parentes e vizinhos das regiões baixas próximas à Ain Karin.


Após termos feito essa breve exploração da narrativa lendária acerca da origem da tradição da fogueira de São João e compará-la com narrativa bíblica e também a apócrifa5 ˗ trazida por Arruda, (2017) ˗ do nascimento do mesmo, o que pretendemos não é afirmar que tal tradição é verdadeira, mas a colocar apenas como hipótese possível, uma vez que algumas informações da tradição lendária não se apresentam de forma totalmente arbitrária em relação às fontes bíblica e apócrifa (sobretudo do livro de Arruda (2007) e do proto-evangelho de Tiago). Talvez a lenda e o senso comum estejam certas em uma parte da lenda do costume da fogueira junina, no entanto, o que consideramos mais importante é o sentido e a mensagem que João Batista nos transmite desde a sua história de superação da esterilidade de sua mãe, o seu ensinamento de que sempre é necessário rever nossas ações e convertermos nossas atitudes, e também o sentido da tradição e dos festejos juninos que foram se constituindo em expressão significativa para a nossa cultura.

REFERÊNCIAS

ARRUDA, Lúcia F. Aquela que acreditou: a vida oculta de Maria de Nazaré. São Paulo: Paulus, 2017. (Coleção Narrativa).


BÍBLIA de Jerusalém: Nova edição revista e ampliada. São Paulo: Paulus, 2002.


CASTRO, Janio Roque Barros de. As festas religiosas em louvor a São João Batista na Bahia: práticas devocionais e elementos míticos na interface sagrado / profano. Disponível em: http://www.cult.ufba.br/enecult2008/14393.pdf. Acesso em: 18 mai. 2019.


EMMERICH, Ana Catharina. Vida, Paixão e Glorificação do Cordeiro. São Paulo: Mir Editora, 2014. Disponível em: <https://docs.google.com/viewer?a=v&pid=forums&srcid=MTY1MjM3MTExOTY0NDI1MjQxNDgBMDM0Mjk4NDUwOTg0ODI2NDYwNzUBMWU4eGVWamRDd0FKATAuMQEBdjI>. Acesso em 18 maio 2019.


GASTAL, Susana. Festa e identidade: o São João do Porto. In: Revista Antares. Vol. 5, n. 9, jan-jun. 2013. p. 178-196. Disponível em: www.ucs.br/etc/revistas/index.php/antares/article/download/2209/1327. Acesso em: 18 mai. 2019.


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